HACER TEATRO HOY. BRASIL
A ESTÉTICA DO OPRIMIDO
Augusto Boal
CONJUNTOS ANALÓGICOS
E CONJUNTOS COMPLEMENTARES
A Natureza jamais produz dois seres idênticos: nem dois grãos
de areia, nem os fios da minha barba ou trigêmeos univitelinos,
nem impressões digitais ou duas gotas de chuva, nem as árvores
da floresta, nem seus galhos e folhas, nem as estrias dessas folhas...
nada é absolutamente idêntico a nada. Todas as coisas inanimadas
e todos os seres vivos são sempre únicos, irrepetíveis,
mesmo se clonados.
Para seres semoventes, humanos ou animais, com um mínimo de vida
psíquica, seria impossível viver dentro dessa infinita diversidade
se não pudessem organizar a sua percepção do mundo,
e simplificá-la.
Ficaríamos paralisados se tivéssemos que ver e ter consciência
de tudo que olhamos; escutar e ter consciência de tudo que ouvimos;
tocar e ter consciência de tudo que sentimos, cheiramos e gustamos
- tal o acúmulo catastrófico e torrencial das informações
recebidas. A Natureza é vertiginosa, mas nós não
podemos viver essa vertigem.
Felizmente, a Natureza permite a criação de aparências
simples das realidades complexas, através da construção
de Conjuntos Analógicos e Conjuntos Complementares. Embora simplificações
excluam complexidades, outro jeito não há, e somos forçados
a realizar o processo psíquico da formação de Conjuntos
para nos podermos guiar e viver neste mundo.
Quando, pela primeira vez, o bebê abre seus olhos, olha tudo aquilo
que os olhos alcançam e, olhando tudo, nada vê: apenas a
cor cinza. Aos poucos, organiza sua percepção visual distinguindo
linhas retas e curvas, profundidades e cores. Quando deixa de olhar tudo
ao mesmo tempo, é quando realmente começa a ver - vê
conjuntos.
Nenhum peixe é absolutamente igual a outro peixe, mas os peixes
se assemelham: eis o cardume. Nenhuma rosa é igual à outra
rosa, mas todas se parecem, vermelhas, brancas ou amarelas: eis o roseiral.
Nenhuma cor é homogênea em toda a extensão do objeto
colorido, mas pode-se abstrair as diferenças que, ao microscópio,
existem, claras e profundas.
Um astronauta disse que a Terra é azul; nós dizemos que
a noite é negra, a floresta verde, e plúmbeo o céu
de chuva... Sabemos que não é assim.
Por analogia, podemos perceber e formar Conjuntos Analógicos, homogêneos,
que englobam seres semelhantes, mas não iguais - Unicidades - em
um todo maior, como o coro de um balé, o coral de uma ópera,
um batalhão de soldados ou a farinha de um mesmo saco.
Podemos perceber, também, Conjuntos heterogêneos, feitos
de elementos Complementares. Não existem dois rios iguais em seu
percurso, mas em todos corre água, no caudaloso Amazonas ou no
riacho do Ipiranga; suas margens são diferentes, mas todas oprimem
a água que neles corre; as pedras, no leito do rio, são
desiguais no peso e na forma, mas parecidas, mesmo quando feitas de matérias
diferentes, orgânicas ou minerais.
Margens, águas, pedras, plantas, flores e peixes formam um aglomerado
de coisas inanimadas e de seres vivos, heterogêneos, mas que podem
ser percebidos como Conjuntos: podemos ver este rio sem nos determos em
cada um dos elementos únicos que o compõem. Podemos nomear
como rio todos os outros Conjuntos que podem ser percebidos como semelhantes
a este. Todos os rios têm a identidade dos rios e sabemos de qual
acidente geográfico estamos falando quando falamos do Nilo ou do
Arroyo de la Sierra (1) de José
Marti.
Podemos perceber a floresta como um Conjunto de árvores semelhantes,
mesmo sabendo que não são iguais; o rebanho, como Conjunto
de animais da mesma espécie, mesmo tendo cada um o seu feitio,
seu focinho e sua fome; podemos ver a multidão como um Conjunto
de seres humanos - embora nenhum deles seja igual a nenhum de nós.
Até mesmo cada indivíduo, ou cada coisa, é um Conjunto
heterogêneo feito de elementos Complementares: temos cabeça,
tronco e membros, artérias e veias, pelo e pele; uma pedra tem
muitas cores mesmo quando é cinza, e ricas variações
formais em sua superfície, mesmo quando roliças.
Dessa forma, simplificando a nossa percepção da Natureza,
podemos viver sem sobressaltos: Unicidades podem ser sistematizadas em
Conjuntos Analógicos de seres e coisas semelhantes, ou em Conjuntos
Complementares de coisas e seres dessemelhantes. Nessa simplificação,
perde-se a riqueza das diferenças e das identidades únicas
que, por infinita, é inacessível.
Essa simplificação, obra do nosso imaginário e não
da multifária Natureza, funciona como couraça que nos permite
o acesso apenas às aparências do real (2)
e, sobre elas, podemos predicar.
Para que nos possamos comunicar entre humanos, esses Conjuntos devem ser
nomeados: nomeamos montanha todas as protuberâncias da terra que
beijam o céu, mesmo sabendo que nenhuma montanha é igual
à outra montanha, nenhuma nuvem igual à outra nuvem, nenhum
sonho igual ao meu. Nomeamos mar - mar de gente bêbeda no Réveillon,
mar de flores ao vento, mar de ondas raivosas - todas aglomerações
onduladas de água, girassóis ou gente.
Nomear significa tentativa de imobilizar. O Nome é a fixação,
no tempo e no espaço, do que é fluido, do que não
pode parar nem ser parado, nem no espaço, nem no tempo.
Tudo é trânsito, mesmo eu, quando me nomeiam Augusto Boal.
Qual? Sou quem era antes de escrever esta última linha ou aquele
que ainda não escreveu a próxima?
Sou um rio de Crátilo (3):
em mim, correm águas que não corriam, e outras correram
e jamais voltarão rio acima: esconderam-se no mar.
Ninguém pode me ver duas vezes como sou, em cada instante fugaz
da minha vida, como fugazes são os instantes... e a vida. Jamais
serei o mesmo a cada segundo que me foge. Aqueles que me vêem agora,
jamais serão iguais a si mesmos em dois segundos sucessivos da
trajetória dos seus caminhos.
Não sou: estou sendo. Caminhante, sou devir. Não estou:
vim e vou. Hesito: para onde? Escolho meus caminhos, se puder; sigo em
frente, se obrigado!
AS PALAVRAS COMO MEIOS DE TRANSPORTE
As palavras - os Nomes - são indispensáveis para que seja
possível a troca, o diálogo, porém são significantes
redutores de significados: designam Conjuntos, mas ignoram as unicidades,
que são a única realidade objetiva verdadeira. Os negros
e os brancos, os homens e as mulheres, o proletariado e o campesinato...
nada disso existe. São, mas não existem. O que existe, concretamente,
é este negro e aquela branca, esta mulher e aquele homem, esta
camponesa e aquele operário e, mesmo assim, em trânsito,
em devir, em tornar-se, em vir a ser e em deixar de ser. E, a cada instante,
nenhum destes é o mesmo, no seu permanente devir.
As palavras, quando pronunciadas pelo emissor, são significantes
com significados ricos das experiências desse emissor, das suas
memórias, desejos e imaginações; no trânsito,
esses significantes mudam seus significados, como caminhão que,
de uma cidade a outra, troca de carga: ao chegar ao receptor, as palavras
estarão carregadas das experiências deste e não daquele
(4). Ou, mesmo que chegue a mesma
carga intocada, o receptor tem os seus próprios aparelhos de recepção-tradução,
que traduzem e traem a mensagem recebida.
As palavras são um meio de transporte, como ônibus e caminhões.
Da mesma maneira como os ônibus transportam pessoas e os caminhões
carga, as palavras transportam nossas idéias, nossos desejos e
emoções. Com a mesma palavra pode-se dizer - na frase escrita,
com a sintaxe e, na falada com a linguagem da voz: timbre,pausas, tom,
volume, etc. - exatamente o contrário daquilo que afirma o dicionário.
(5)
A primeira coisa que um meio de transporte transporta é a si mesmo:
podemos apreciar como é bonito um caminhão, um ônibus
ou uma palavra: mas, para melhor compreende-los, é preciso ver
o que levam dentro.
A palavra é um todo que não é nada. É um traço
que riscamos na areia; um som que, como delirantes escultores, esculpimos
no ar. Um traço que as ondas levam; um som que se dissolve na brisa.
Areia, nós a sentimos na mão; o vento, no nosso rosto. E
as palavras... onde estão? Em nenhum lugar, pois não existem:
apenas são.
As palavras não estão em nenhum lugar e estão em
toda parte. Palavras são o vazio que preenche o vazio que existe
entre um ser humano e outro.
Nós, rasgando a areia ou cortando o ar, nesse vazio depositamos
nossa vida, nossos desejos, medos e coragem, sensações e
emoções: eis a palavra. Preenchemos o nada com o tudo que
somos: somos as palavras que dizemos, e as palavras somos nós inteiros,
transformados em sons e em traços.
Para que as palavras adquiram um sentido mais preciso e menos permissivo,
é necessário vesti-las: na tragédia grega, com máscara,
coturno e manto; no cinema, com iluminação, ângulos
e figurinos. Na vida cotidiana, com nossas roupas, gestos culturais, timbres,
fisionomias...
Para que sejamos capazes de apreender o Uno e não apenas os Conjuntos
aos quais pertence, alguma outra mediação se torna necessária
para evitarmos as imprecisões de darmos o mesmo nome, boi, a todos
os bois da boiada, pois esse gado é feito de unicidades bovinas
irrepetíveis, não de massa açougueira. Cada boi tem
a sua personalidade própria: é Uno. A boiada é uma
sinergia.
Palavras são obra e instrumento da razão: temos que transcendê-las
e buscar formas de comunicação que não sejam apenas
racionais, mas também sensoriais - comunicações estéticas.
Atenção: esta transcendência estética da Razão
é a razão do teatro e de todas as artes.
Não podemos divorciar razão e sentimento, idéia e
forma. São sólidos casais, mesmo quando às turras,
bicadas e cabeçadas.
PROCESSO ESTÉTICO E PRODUTO ARTÍSTICO
O Artista é aquele que, como qualquer de nós, é capaz
de ver Conjuntos onde analogias ou complementaridades unificam desiguais;
por isso, pode viver em sociedade. Porém, ao não se deter
diante da visão conjuntiva que usamos para perceber a realidade,
através dos Conjuntos Analógicos ou Complementares, ou diante
das palavras que usamos para nos comunicar - pois que as palavras são
símbolos que designam Conjuntos -, o Artista avança, penetra
no real e revela, em seu fazer estético (a busca, o trabalho, a
tentativa, o erro e o acerto) e no seu produto artístico (a obra
de arte acabada) percepções e aspectos únicos dessa
realidade encouraçada, blindada: percebe e revela unicidades escondidas
pela simplificação da linguagem que as nomeia, e pelos sentidos
que as agrupam, sem percebê-las.
O Artista penetra na unicidade do ser (6),
como se buscasse o seu complemento, como se buscasse a si mesmo: sua Identidade
na Alteridade. O Uno busca o Uno, busca a si mesmo no Outro (7).
Essa dinâmica percepção nunca se imobiliza, mas se
intensifica ou diminui de intensidade, sempre: tanto a percepção
do artista ao perceber a Coisa, como a do espectador ao fruí-la,
ou a do amante ao amar. Amores se conquistam e se perdem, ao sabor da
vida... e do domínio que, sobre ela, possamos alcançar.
Como a Arte, que não é nunca a mesma.
Embora apenas algumas pessoas sejam nomeadas com o adjetivo de Artistas,
todo ser humano é, substantivamente, artista. Todos possuímos,
em maior ou menor grau, a capacidade de penetrar em unicidades, fazendo
arte ou amor. Somos capazes de encontrar o Uno.
É importante notar a distinção que aqui faço
entre o fazer, isto é, o Processo Estético, e o já
feito, ou seja, o Produto Artístico. Para que este exista, aquele
é necessário; mas não é necessário
que o Processo Estético dê origem ao Produto Artístico,
que pode ficar inconcluso.
Para a Estética do Oprimido, mais importante é o Processo
Estético embora seja bem desejável que se chegue ao Produto
Artístico - a obra de arte acabada - pelo seu poder amplificador,
social.
O Processo Estético permite que o sujeito se exerça em atividades
que lhe são habitualmente negadas, expandindo suas possibilidades
expressivas e perceptivas. Cada exercício em uma área de
atividade humana estimula áreas adjacentes. O Processo Estético,
por essa razão, é útil em si mesmo. Mais útil
se torna quando chega à produção de um Produto Artístico
que possa ser compartido com outros sujeitos, igualmente empenhados em
seus próprios Processos Estéticos.
É preciso deixar claro que o Processo Estético não
é a Obra de Arte. Sua importância e seu valor consiste em
estimular e desenvolver as capacidades perceptivas e criativas que estão
atrofiadas no sujeito. Consiste em desenvolver a capacidade, por menor
que seja, que tem todo sujeito de metaforizar a realidade.
O AMOR E A ARTE
Arte é amor. A pessoa amada é o Ser Único, descoberto
pelo amante e só por ele. Amando, nós o vemos e sentimos
como insubstituível, irreproduzível. Amando, nós
penetramos na unicidade do ser amado que, por sua vez, é um uno-universo
complexo e em movimento constante. Justamente porque é constante
esse movimento, o amor não o é. Por isso, Swan, o personagem
de Proust, pode dizer, ao reencontrar seu antigo amor, já esquecido:
- "Ela nem sequer é o meu tipo..." Não é,
agora, mas, no tempo em que se perseguiram, e no percurso que percorreram
juntos, foi!
O amor, que é uma experiência estética, embora fundado
na realidade, é obra do imaginário: ao amar, amamos não
apenas a pessoa que concretamente existe, mas as projeções
que sobre ela fazemos - projeções que são produto
e parte de nós mesmos. Nosso imaginário projeta, sobre a
pessoa amada, características e virtudes que não lhe pertencem,
mas existem em nosso desejo.
Amar é Arte, e Arte é Amor. Estes dois processos - amar,
e perceber esteticamente a unicidade de outro Ser, vivo ou Coisa - são
absolutamente idênticos. Mais ainda: são a mesma coisa (8).
Sendo idênticos, no Amor como na Arte, a nossa percepção
do Outro, ou da Coisa, não se congela nem se imobiliza: o Amor
é fluxo de corrente alternada - como pode ser a eletricidade e
são as marés, porém sem a garantia dos ritmos constantes
ou previsíveis - nunca igual a si mesmo, sempre ao sabor de constante
variação.
É verdade que existem amores eternos - especialmente os que terminam
em tragédias sangrentas... - e obras de arte perenes, mas nem a
pessoa amada, nem a obra admirada, são admiradas e amadas com a
mesma intensidade constante. No amor e na arte, a única constante
é a inconstância.
Ao contrário do que se diz, o Amor não é um encontro:
é uma perseguição!
Aquele ou aquela que está sempre mudando persegue aquela ou aquele
nunca é igual a si mesmo.
O amor não oferece nenhuma garantia de estabilidade, como sabemos
e temos provado. Da mesma forma que devemos cultivar a Arte com amor,
o cultivo do Amor é uma arte.
ARTE E CONHECIMENTO
Para encontrar o acesso a essas realidades últimas e únicas,
existem os artistas, cujas atividades estéticas - isto é,
sensoriais - surpreendem as unicidades e permitem conhecer a verdadeira
realidade, sempre única. Na Arte, como Processo Estético,
e na Obra de Arte, como coisa acabada, como Produto Artístico,
o ser humano entra em contato com o real. Como no orgasmo apaixonado,
ou no delírio.
Neste sentido, a Arte é uma forma especial de conhecimento, subjetiva,
sensorial, não científica; não é melhor que
outras, mas é única. O artista, no exercício da sua
Arte, viaja além das aparências do real e penetra nas unicidades
escondidas pelos Conjuntos (9);
na Obra de Arte, sintetiza sua viagem ao âmago do real e cria um
novo Conjunto - a Obra - que revela o Uno descoberto nesse mergulho; este,
por analogia, nos remete a nós mesmos.
Quando escuto os primeiros severos acordes da Quinta Sinfonia de Beethoven,
a trêmula ária Voi que sapete, do Querubim morzateano, ou
a triste Donna traviata verdiana, em cada caso são acordes únicos
que escuto, na anárquica infinitude dos sons e ruídos que
explodem à minha volta. Alguma coisa única, escondida em
algum único lugar de mim, desperta e vibra, e me faz vibrar, como
um todo, como ser humano - isto é a Arte.
Vibramos como artistas ouvindo acordes únicos, estruturados de
maneira única. Através da unicidade chega-se, por analogia,
a um novo Conjunto imaginário - o daquelas pessoas que alguma identidade,
não racional, mas racionalizável, sentem com tais acordes,
com o sorriso da Gioconda, ou com a Vênus de Milo que, necessariamente,
não pode ter braços: se os tivesse, seria outra.
O eu se transforma em nós. Em nós, descobrimos a descoberta
que fez o artista. Quando somos capazes de dizer Nós, descobrimos
o nosso verdadeiro Eu. Torno-me soma de todas as minhas relações,
e algo mais, como qualquer sinergia.
Metaforicamente, sou sons e formas, sons e cores, sou Wagner e Velasquez...
Mesmo se jamais cantei como Valquíria, e jamais pintei bêbedos
ou meninas.
A Arte re-descobre e re-inventa a realidade a partir de uma perspectiva
singular: a do artista, que é único, como é única
a sua relação com o real e o seu caminho de ver e sentir,
do qual nasce a Obra de Arte. A realidade, tal como é vista pelo
artista, só pode ser observada a partir da sua Obra, também
única. (10)
O cientista faz o mesmo, porém de uma perspectiva anônima
que pertence a todos, e não depende da individualidade do solitário
cientista. O Teorema de Pitágoras revela que, em um triângulo
retângulo, o quadrado da hipotenusa é sempre igual à
soma dos quadrados dos catetos, e isso acontece em qualquer país,
a qualquer hora do dia ou da noite, no verão como no inverno, seja
lá quem for o desenhista do triângulo. Newton jurou que a
matéria atrai a matéria na razão direta das massas
e inversa do quadrado das distâncias, e isso é verdade em
qualquer estação do ano, assim na terra como no céu,
chova ou faça sol. Não importa que, mais tarde, Einstein
tenha introduzido a idéia de que o espaço se curva quando
próximo de a massa de qualquer matéria - para nós,
que vivemos com os pés na Terra, o melhor é nos afastarmos
das macieiras...
A Ciência é uma Arte, mas Arte não é Ciência.
A Arte não dá conta de toda a realidade verdadeira, mas
é uma verdadeira realidade.
A ESTÉTICA E OS NEURONIOS
A Estética do Oprimido se baseia no fato científico de que
quando, em cada indivíduo, são ativados os neurônios
da percepção sensorial - células do sistema nervoso
-, esses neurônios não ficam lotados de barriga cheia, como
bytes de um computador, armazenando informações estáticas.
Eles não se esgotam nem se repletam - o saber não ocupa
espaço, diz a sabedoria popular! Ao contrário dos bytes
solitários, os neurônios estimulados formam circuitos que
se tornam cada vez mais capazes de receber e transmitir mais mensagens
simultâneas, sensoriais ou motoras, abstratas ou emocionais, enriquecendo
suas funções e ativando neurônios vizinhos para que
entrem em ação, criando redes cada vez maiores de circuitos
conjugados que nos fazem lembrar outros circuitos, estabelecendo relações
entre circuitos que, entre si, mantenham alguma semelhança ou afinidade,
o que nos permite criar, inventar, imaginar.
Sou tentado a dizer que a imaginação é a memória
transformada pelo desejo. Digo!
Os neurônios começam a ser produzidos no feto, de forma acelerada,
antes mesmo do fim do primeiro mês de sua vida uterina São
todos iguais, sem nenhuma especialização. Dependendo do
lugar onde se vão instalar, eles se especializam na função
que devem ter onde se instalam. Se vão para o nervo auditivo, especializam-se
em transmitir sons para o córtex cerebral; se no ótico,
imagens,;e assim por diante.
As mensagens recebidas pelo Córtex - sons, imagens, cheiros, gostos,
sensações cutâneas, idéias, fisionomias...
- transformadas em circuitos neurônicos, relacionam-se com outros
circuitos já existentes em camadas mais profundas e estáveis
do cérebro, e que são trazidos de volta ao Córtex,
onde vão dialogar com as novas mensagens, diálogo do qual
nascerão as decisões do sujeito.
Todos esses circuitos modificados retornarão às camadas
subcorticais onde, mais tarde, irão influenciar a recepção
de novas mensagens com as quais guardem alguma relação.
Os primeiros sons influenciarão a recepção dos novos
sons; as primeiras imagens, novas imagens; as velhas palavras serão
confrontadas com novas palavras; velhos conceitos com novos conceitos;
primeiros valores com valores novos. Todos esses primeiros, os mais arcaicos,
não são imutáveis,é claro, e podem ser modificados,
substituídos ou erradicados porque não são definitivos
- nada no ser humano é definitivo! Mas influenciam.
Se o cérebro de um telespectador se enche de filmes de inspiração
holiudiana, vazios de idéias e repletos de força física,
é claro que esses tiros, bombas, explosões e rajadas de
metralhadora vão influenciar a posterior percepção
do mundo que terá esse infeliz espectador.
Não é a violência em si mesma que causa danos aos
espectadores, mas sim a carência de razões, de motivações.
A EMPATIA criada com os Rambos e outros que tais é pura animalidade
irracional. É como se o espectador vivesse na selva em companhia
de animais predadores, sem a presença humana.
A violência, em si mesma, não é boa nem má.
Será má quando desacompanhada de razões, quando se
reduzam a socos objetivos sem subjetividades. Mas poderá também
servir didaticamente quando racionalizada - quando revelada sua ética.
A repetição de cenas quase iguais ou semelhantes, clichês
-sejam edulcorados romances ou torturas policiais - não se deve
à falta de criatividade dos seus autores, mas sim à deliberada
intenção de, pela mecânica repetição
interminável, bloquear o desenvolvimento intelectual metafórico
das passivas platéias.
O maravilhoso filme de Stanley Kubrik, Full Metal Jacket, mostra com perfeição
estética o processo ultra-militar de socavar, no cérebro
dos recrutas, peremptórias ordens de obedecer e matar. O que o
genial diretor demonstra, em um exemplo militar, é o mesmo processo
que acontece no âmbito da TV civil.
Tememos a invasão da floresta amazônica por cobiçosas
potências estrangeiras. É certo: devemos temê-la! Muito
mais perigosa, porém, é a invasão da comercial cinematografia
norte-americana que já domina e dirige a maior parte dos nossos
sonambúlicos espectadores de TV.
Não estamos falando apenas da TV, mas de toda a mídia que
escamoteia os fatos nacionais e internacionais realmente importantes,
e expõe as pequenas desavenças entre gente da sociedade
rica.
Estamos falando também do discurso político em que os líderes
mais autocratas surrupiam palavras como Liberdade, Democracia, e tantas
outras, dando-lhes um sentido exatamente oposto ao que têm, e guardam.
Invocando a Liberdade, o Mundo Livre, e a Democracia, um país invade
outros países, tortura e mata seus cidadãos, afirmando que
assim o faz para restabelecer a ordem. Qual ordem? Aquela pela força
imposta.
Essa proposital apropriação indébita de significados
e significantes tem por objetivo destruir a capacidade metafórica
dos cidadãos e conduzi-los pelo nariz por caminhos pré-fixados.
A Metáfora, no seu sentido mais amplo de translação,
inclui todas as linguagens simbólicas, entre as quais a Palavra
e a Alegoria. Ativando-se os neurônios estéticos com novos
estímulos, ativa-se a criação de Metáforas
- todas as Metáforas.
Sem uma atividade metafórica autônoma - que é o que
busca desenvolver a Estética do Oprimido - a inteligência
se paralisa e o indivíduo se aproxima outra vez da condição
de hominídeo, aquela com a qual começou a sua evolução!
Quero insistir em que os animais e os hominídeos não são
capazes de atividades metaforizantes; não são capazes de
transcreverem a realidade que os cerca e na qual se inserem, em outras
formas. Todas as artes são Metáforas - só os humanos
são artistas.
Não é por inocência que os adeptos da globalização
desejam o o monopólio cinematográfico para imporem um cinema
com personagens simplificados, pasteurizados, fabricados com o mesmo celulóide
com que se fabrica o filme; querem que esses personagens realizem ações
físicas desacompanhadas de razões, bem ao contrário
da tragédia grega que era o balé das palavras, o balé
das idéias, dos logos, a dança dos conceitos.
Na Tragédia, toda violência física se realizava fora
de cena: Édipo, fora de cena, arrancava seus olhos para melhor
ver e se ver a si mesmo - sua cegueira era apenas física, quando
antes era ética. Medéia jamais mataria seus filhos diante
do aplauso frenético dos espectadores boquiabertos. Suas razões,
essas sim, bailavam diante das platéias gregas, que eram respeitadas
como pessoas inteligentes, e não como fanáticos espectadores
de uma sangrenta luta de boxe tailandês. É verdade que em
Shakespeare a violência física chega aos braços cortados
em pleno palco, mas nunca desacompanhada de razões, e estas são
sempre mais importantes do que aquela.
Nos filmes holiudenses, ao contrário, sobra violência e faltam
idéias, que se reduzem a uma só: o direito pertence ao mais
forte, nós, que estamos sempre certos, somos sempre o Bem em nossa
cruzada contra o Mal, que são sempre os que pensam diferente de
nós, ou aquelas que não pensam nada...
Com este lixo ético despejado nos seus inocentes neurônios,
os vulneráveis espectadores vão, mais tarde, receber as
novas informações. Não nos podemos espantar diante
de crimes do tipo Columbine (11),
que foram prenunciados e promovidos por esse tipo de cinema, nem podemos
esquecer que as Tôrres Gêmeas de Nova York foram destruídas
em um filme de ficção, antes de serem filmadas em chamas,
na tragédia verdadeira.
Mesmo que os filmes não mostrem nenhuma brutalidade explícita
- especialmente no caso das comedias ligeiras com final feliz - suavemente
introduzem em nossas cabeças os hábitos, costumes e até
a maneira de falar dos cidadãos dos seus países: a maneira
de vestir, o trabalho e o lazer, as relações amorosas e
o uso do dinheiro, as opções morais e a razão de
viver.
Quando um famoso astro de Hollywood, em um filme romântico, tirou
a camisa e mostrou que não usava camiseta, como era hábito
na época, caíram as vendas das fábricas de camisetas
de Santa Catarina... Os espectadores são levados e pensar e agir
como agem e pensam os atores na tela - principalmente se estiverem comendo
pipoca e bebendo uma variante da coca... o que já é uma
influência da tela.
Na Organização Mundial do Comércio, alguns países
defendem a chamada exceção cultural, não porque defendam
a Cultura, mas porque, através dela - cinema, música, vídeos,
CDs, DVDs e outras indústrias - é o comércio que
sub-repticiamente expõe e impõe os seus produtos através
da imagem e do som. Não aquele necessário e indispensável,
sadio comércio que vai satisfazer as necessidades do comprador
- forma exemplificada nas gostosas feiras livres - mas sim o comércio
malsão que cria necessidades desnecessárias - forma exemplificada
nos infernais shopping- centers, malls, etc.
O mesmo acontece com jovens criados em ambientes dominados pelo narcotráfico.
As mensagens recebidas pelos seus jovens cérebros são as
mensagens de morte, tortura, falta de escrúpulos - a vida humana
não é um valor, não vale um centavo, termina sem
aviso.
Como esperar que uma Ética humanística saudável surja
do seio da miséria e do medo? (12)
COROAS DE CIRCUITOS NEURONICOS, REFRATÁRIAS E AGRESSIVAS,
MAS NAO INDESTRUTIVEIS
As Coroas que aqui apresentam são uma hipo-tese, isto é,
menos que uma tese. Não posso, pois, apresentar provas cabais da
sua existência, mas, por sua vez, nenhum neuro-cientista pode apresentar
provas cabais da sua inexistência.
Ni non é vero, é bene trovato!
Nomeio Coroa a este sistema, inspirado nas Coroas Reais que, na Idade
Média, unificavam feudos, estruturando países. O Rei submetia
barões, príncipes, condes, e outros nobres ao seu domino,
dentro de uma estrutura maior que os condados, principados e baronatos.
A penetração de novas informações sensoriais
no Córtex, através do Tálamo, e a circulação
cerebral de mensagens abstratas e emoções concretas, pode-se
dar de forma fluida e harmoniosa, integrativa, permitindo-se que novos
circuitos se formem, que se entrelacem criando novas redes, mais ricas
e complexas, de mais circuitos neurônicos.
Pode acontecer, porém, que, dada à natureza das informações
e dos circuitos que as contém, essa redes se cristalizem tornando-se
opacas e compactas, estruturas coerentes que se recusam à absorção
e ao diálogo com novos circuitos exteriores a essas estruturas,
impedindo assim a chegada de novas informações que sejam
conflitantes com as já existentes no seu próprio sistema.
Essas Coroas, refratárias a trocas, são agressivas e destruidoras.
Exemplos dessas Coroas são encontrados em todas as formas de extremismo
religioso que, através da existência de um sistema coerente
de Dogmas e Revelações inquestionáveis, jamais discutidas,
tornam-se agressivas e destruidoras em relação a outras
Coroas - outros extremismos! - ou a outras informações.
Elas impedem o livre fluir da Razão.
O fanatismo esportivo, a adoração idolátrica de uma
pessoa ou instituição, o sectarismo político, as
gangs (narcotráfico) e as clãs (Montequios e Capuletos)
- mesmo quando existam outras explicações sociais e econômicas
para isso - são exemplos concretos da formação dessas
Coroas, formadas pela repetição constante das mesmas informações
com o mesmo conteúdo.
Se as orações de uma religião extremista, ou dos
extremistas de uma religião, fossem feitas apenas uma vez cada
três meses, essas Coroas não se formariam. Sendo realizadas
várias vezes ao dia, sim. Se as partidas de uma equipe de futebol
fossem travadas uma vez a cada meio ano, não existiriam hooligans
- como se realizam uma ou duas vezes por semana, não deixam tempo
ao sujeito de pensar outros pensamentos. Se um enfrentamento entre gangs
fosse acidental e esporádico, fortuito encontro de rua, nenhuma
Coroa se formaria e o diálogo seria possível. Seria possível
compreender o outro.
Só as repetições constantes produzem as refratárias
e agressivas Coroas. Essa não é uma condição
bastante, mas é uma condição necessária!
Completando: essas Coroas integram várias regiões do cérebro
envolvidas em suas múltiplas atividades. Na teoria de Hughlings-Jackson
(1835-1911) algumas atividades cerebrais são bastante simples,
como as do nervo ótico, enquanto que outras, como o pensamento,
estruturam uma grande quantidade de elementos simples.
Não esqueçamos que o cérebro é um sistema
ecológico onde tudo está interligado, e não um disco
duro de computador.
CIRCUITOS NEURONIOS ESTÉTICOS
Quando, sobre determinado assunto, a Ciência não tem uma
resposta precisa ou um saber inquestionável, abre-se o caminho
para interpretações poéticas... Sou poeta!
Assim, além dos neurônios especializados em apenas uma atividade,
existem também os que, dentro dos circuitos que integram, acumulam
diversas funções e são capazes de receber e transmitir
sensações físicas e emoções profundas,
idéias complexas, palavras e símbolos. Estes neurônios
e estes circuitos se encontram principalmente no córtex e no tálamo,
partes fundamentais do cérebro humano.
Pedindo perdão aos neurocientistas, quero chamá-los de Neurônios
Estéticos porque é essa a função da Estética:
através de estímulos sensoriais, revelar razões e
emoções. Estes circuitos neurais são capazes de perceber
o mundo na relação entre o Uno e o Conjunto, relativizá-lo
e descobrir sua lógica.
Dostoievski escreveu que "Só a Beleza salvará o mundo",
frase que nós podemos traduzir por: "Só a Estética
permite a mais verdadeira e profunda compreensão do mundo e da
sociedade".
As sinapses são os pontos de encontro entre neurônios, através
dos neuritos - Axônios, que transmitem, e Dentritos, que recebem:
braços suaves que se abraçam, superfícies por onde
circula a informação - a imagem, o som, a palavra, o prazer
e a dor, a lembrança, os diálogos... - através de
processos químicos e estímulos elétricos.
As sinapses se multiplicam e se diversificam, na medida em que são
estimuladas (13). Quanto mais conhecemos,
mais cresce nossa capacidade de conhecer. Quanto mais me ponho a pintar,
mais invento como usar pincéis, como se eu fosse pintor. Quanto
mais me ponho a cantar, mais conheço a extensão da minha
voz, como se fosse cantor. Quanto mais fizer dançar minhas palavras,
mais aprendo a amá-las, como se fosse poeta. Fazendo, serei pintor,
poeta e cantor. Sou.
O saber, o conhecer e o experimentar, expandem a minha capacidade de conhecer,
saber e aprender. Expandem além da minha busca e me fazem encontrar
o que nem sequer procuro. - "Não busco: encontro!" -
disse Picasso. Nós também se, para isso, nos dedicarmos
a ver o que olhamos, ouvir o que escutamos, sentir o que tocamos, escrever
o que pensamos. Somos todos Picassos, cada um na sua medida... e ao seu
jeito.
VOLUME, TERRITÓRIO, E AS INSIGNIAS DO PODER
A pedra, inanimada, ocupa no mundo um espaço idêntico ao
seu volume. As plantas crescem e necessitam maior território do
que apenas o seu volume: mesmo imóveis, nutrindo-se de terra e
chuva, as árvores espalham sombras no chão onde não
mais floresce a grama - chão que é parte do território
da árvore, maior que o volume do seu corpo.
Os animais lutam por espaço ainda maior. Alguns marcam seus territórios
pelo cheiro, como cães que urinam para que se saiba a quem pertence
aquele espaço - poderiam urinar a bexiga inteira em um só
poste, mas preferem usar vários postes e muros a fim de marcarem
maior espaço. Outros, pelo ouvido: leões urram, pois não
ficaria bem um leão urinando em muros e postes, com a perna levantada;
lobos uivam, tigres bramam, gatos bufam, o galo clarina o seu galicanto,
o falcão crocita, a onça esturra, geme a juriti enquanto
ri a hiena, silva a serpente e suspira a ema.
O ser humano também usa seus sentidos para estender os limites
do seu território. Dos três de longo alcance, mais do que
o ouvido e o nariz, o ser humano usa seus olhos, a visão: a Imagem.
Por isso, todas as sociedades humanas são espetáculos visuais,
secundados pelos demais sentidos. O que varia, com o avanço da
História, não é o seu caráter espetacular:
são os meios de produzir o espetáculo.
Nossas sociedades tecnológicas sofisticadas - que usam a luz elétrica,
rádio, cinema, TV e computação - dão a impressão
de que só elas são espetáculo, ou que o espetáculo
com elas nasceu. Na verdade, para realizarem o seu espetáculo,
cada sociedade usa os meios de que dispõe.
As sociedades são todas espetaculares, no melhor sentido estético
da palavra, porque se baseiam em relações de poder, e o
poder exige insígnias e rituais. Como é abstrato antes de
ser exercido, pura potência antes do ato, exige concreções
para ser reconhecido à primeira vista e ao primeiro som, para ser
temido e respeitado. Insígnias bem evidentes e rituais bem estruturados,
conscientes ou não.
O Rei Louis XIV acordava todas as manhãs diante de espectadores
escolhidos entre os seus favoritos da Corte, que esperavam ansiosos para
aplaudirem o seu primeiro bocejo matinal, ao som de suave alaúde
e cravo, em belas composições de Lully.
Esses nobres disputavam a preferência do monarca, vestindo-se de
forma adequada para tal cerimônia, e aplaudindo com suave balé
de palmas bem medidas. O espetáculo mostra não apenas o
seu titular principal, o protagonista, mas toda uma hierarquia do poder,
estruturada nos seus rituais específicos, até o coadjuvante
menos importante. Todos devem desempenhar os seus papéis. Mesmo
nu, o Rei está sempre pomposamente vestido de seda e ouropéis.
Uma carruagem serve como meio de transporte, mas a carruagem que transporta
reis e rainhas - se fosse só essa a sua utilidade - seria bem mais
eficaz se fosse substituída por um carrinho popular de dois ou
três cavalos de potência, ao invés dos quatro ou seis
garbosos animais de carne e osso. A carruagem é símbolo
de poder, de vetusta hierarquia e tradição. Secundariamente,
transporta.
Hoje, já não se usam espetáculos tão artesanais
e ingênuos como os dos Luízes; ainda assim, os reis continuam
exibindo suas coroas, o papa sua mitra, o general suas estrelas, e as
damas das burguesas cortes, suas jóias e cirurgias plásticas.
Bocassa, ditador da Centro-África, apesar de ter um poder unipessoal
e discricionário, exercido através dos seus soldados sanguinários,
gostava de se apresentar paramentado de cetins e sedas, ornado de pedras
preciosas, fartas em seu país. Exigiu ser coroado Imperador na
presença de dignitários estrangeiros. Cobiçosos pelos
seus diamantes, muitos vieram à festança.
Não só as festas de 15° aniversário de uma jovem
que dança como pai sua primeira valsa, ou a cerimônia do
seu casamento; não só o lançamento ao mar de um navio,
não só essas pompas são espetáculo, mas até
mesmo um almoço ajantarado dos domingos familiares que se processa
segundo regras estabelecidas como qualquer peça de teatro. Tudo
é espetáculo para que se saiba quem é quem!
A aparição de qualquer cidadão em uma capa de revista,
na coluna social ou esportiva, ou em um programa de TV, pode dar a qualquer
pessoa, por mais insignificante que seja, o poder correspondente a esse
status que lhe confere a mídia. Mídia que é, a um
só tempo, fonte de informação e de valoração
daqueles que nela desfilam: fontes de poder, como a coroa e a mitra.
A superficialidade da maioria dos programas de TV não é
casualidade, mas caso pensado. A burrice é proposital. A TV é
feita para vender produtos e idéias através do mecanismo
insidioso da empatia, que nos faz suspender o nosso senso crítico
e a nossa necessidade de atuarmos para, imobilizados no corpo e na alma,
ficarmos a mercê dos ralos pensamentos, reles linguagem, chã
e vazia, costumes consumistas, e as violentas ações que
nos impõe a tela.
Nem sempre a estrutura desses programas já os condena. A idéia
dos reality shows, em si mesma, não é tão ruim assim:
se, ao invés de meia dúzia de pessoas medíocres e
incapazes de articular pensamentos, os produtores convidassem Noah Chomsky,
Arthur Miller, Susan Sontag, Michael Moore - para citarmos apenas norte-americanos
- ou muitos outros excelentes artistas e pensadores do mundo inteiro para
ficarem encerrados vinte e quatro horas em uma sala trocando idéias,
eu juro que não dormiria nessas vinte e quatro horas - olhos vidrados
na tela.
Paradoxo: a TV torna-se a única verdade absoluta, e a realidade
torna-se ficção ou mentira, até que seja referendada
pelo Jornal da Noite.
No fim da década passada, no centro do Rio de Janeiro, houve um
assalto a um ônibus com a tomada de reféns que durou cinco
horas e foi filmado integralmente pela televisão. Uma jovem confessou
que, ao passar pelas imediações e ao ver tudo aquilo que
estava acontecendo, ali, diante dos seus olhos, voltou correndo pra casa
e ligou a televisão para ter certeza de que era verdade o que havia
presenciado.
Menos tecnológicos, indígenas brasileiros usam plumagem
colorida que exibem em suas festas ou quando se preparam para a guerra.
Alguns usam objetos redondos - sua mitra e sua coroa! - com os quais furam
seus lábios adquirindo feições assustadoras. À
sua volta, todos dançam respeitosos, em busca de um lugar na estrutura
de poder que a proximidade do cacique oferece. Em um contexto diferente,
é exatamente igual aos nobres de Louis.
As insígnias, ao mesmo tempo em que, com sua presença, individualizam
o seu possuidor como alguém superior e potente, são também
Imagens da Ausência. A coroa real nos faz perceber a nossa pequenez:
somos cabeças não-coroadas! As insígnias mostram
onde reside o poder e, ao mesmo tempo, nos denunciam como não possuidores
desse poder: somos súditos, vassalos ou escravos.
Isto é explicitado na estrutura de todos os espetáculos-rituais:
basta vê-los, mesmo inconscientemente, para tudo compreendermos,
e para que nos comportemos segundo a posição que neles ocupamos.
A maior humilhação que pode sofrer um militar é que
lhes retirem as medalhas em frente à sua tropa reunida, soldados
sem medalhas: retorno ao marco zero.
OS TRES NIVEIS DA PERCEPÇAO
Para viver, exercer nosso poder e ocupar nosso território, nós,
animais de todas as estirpes, necessitamos perceber o mundo onde vivemos.
Essa percepção dá-se em três níveis:
1. Informação - o nível receptivo: a luz se reflete
sobre os objetos, atravessa o cristalino dos meus olhos, estimula minha
retina que informa o nervo ótico, que faz circular essa informação
eletroquímica até aquela região do cérebro
que me fará ver o que está diante de mim. Recebo a mensagem.
Essa informação não fica arquivada mas, pelo contrário,
inter-relaciona-se com outros circuitos neurais. Semelhantemente ocorre
com os demais sentiudos.
2. Conhecimento e Tomada de Decisões - nível ativo: o indivíduo
relaciona as novas informações com as que já havia
recebido anteriormente, e toma decisões reativas.
Nestes dois níveis, humanos e animais se igualam: ambos decidem,
reagem. Em alguns, as decisões são instintivas ou biológicas.
Ratos criados em laboratório, que jamais viram a cor de um gato
nem conhecem o seu mau caráter, fogem espavoridos quando sentem
o cheiro do felino: mesmo sem conhecer o inimigo, o rato reage biologicamente
e repele o cheiro.
No ser humano, o Conhecimento é acompanhado de uma avaliação
subjetiva, que pode induzir ao erro. Em nós, a Informação
e o Conhecimento nos levam ao terceiro nível, como neste exemplo:
Abro a porta da minha casa e vejo um tigre, fugido do circo: meu nervo
ótico registra sua presença - recebo a informação!
Excelente! Meus sentidos funcionam. Fico feliz.
O tigre se aproxima e as informações continuam a chegar
com eletroquímica precisão neurônica: vinte metros,
dez, cinco. O tigre brama, e escuto o seu bramar: ativa-se o meu nervo
auditivo, bravo! Continuo alegre com o funcionamento perfeito dos meus
sentidos.
O tigre abre sua enorme boca - ativa-se o meu nariz e sinto o bafo quente!
Fico contente; as informações são corretas, estou
bem informado. O tigre abre a goela e arreganha os dentes! Maravilha:
percebo tudo, tão perto estou dos seus dentes afiados.
Se parasse aí o meu processo psíquico, eu seria engolido
com apetite e sem delongas. Mas como, no nível do Conhecimento,
eu já sabia que o tigre é perigoso, que posso trancar a
porta e usar a chave, que tenho pernas, posso correr e me refugiar no
andar de cima - sei que posso me salvar. Como o rato fugindo do gato.
Como humano, não me reduzo a fugir: posso tomar decisões
criativas, buscar outras soluções. Inventar. Devo escolher
o que fazer. Na gaveta, tenho um revólver e posso matar o tigre.
Subo ao segundo andar, abro a gaveta, ponho a mão lá dentro
e...
3. Consciência Ética, o nível humano - este nível
é exclusivo do ser humano: consiste em dar sentido e valor às
decisões que tomamos. Eu me interrogo - este é o nível
da dúvida e da escolha eticamente justificada.
Devo matar o tigre? Afinal, ele está desnutrido, faminto - a crise
econômica diminuiu sua ração! O tigre quer apenas
me comer, satisfazendo a sua fome, sem aleivosia: comer pessoas lhe é
tão natural como à piranha devorar um boi. Eu posso me salvar
mas, se o deixar livre, o tigre pode comer o filhinho do vizinho que está
brincando com o triciclo que ganhou de Natal - o menino tem a carne mais
tenra do que a minha...
Chamo os bombeiros? Jogo minha escrivaninha na cabeça do tigre
para que fique desacordado? Grito?
Este terceiro nível é Ético: dá valores a
cada ato, e projeta o ser humano em suas ações no futuro,
não apenas em suas reações no presente.
É criativo: exige a invenção de alternativas. É
neste nível ético que se deve mover uma sessão de
Teatro-Fórum: não bastam boas idéias, é necessário
que sejam eticamente justificadas. Não basta trabalhar com as idéias
que já existem: é necessário inventar.
No nosso trabalho teatral, é importante ampliar e amplificar todos
os níveis da percepção, especialmente o Ético,
para que as nossas escolhas sejam conscientes - com ciência - das
possibilidades que existem ou podem ser criadas, em cada situação:
sempre existe escolha!
A NECESSIDADE DA ESTÉTICA DO OPRIMIDO
A Estética do Oprimido, que o CTO-Rio está desenvolvendo
a partir de agora, 2004, é necessária e essencial, na medida
em que produz uma nova forma de compreender, fazendo com que o sujeito
esteja sentindo e, ao mesmo tempo, através de suas sensações
e não apenas de sua inteligência, compreendendo a realidade
social. Inteligência quente!
A Estética do Oprimido é mais ampla do que o simples perceber,
envolvendo camadas emocionais e intelectuais da nossa percepção,
somando, à linguagem simbólica da palavra e dos signos,
a linguagem sinalética dos sentidos.
O teatro é a forma mais natural de aprendizado, a mais arcaica,
pois que a criança aprende a viver através do teatro, brincando,
interpretando personagens - e, através das outras artes, pintando-se
e pintando, cantando e dançando.
É verdade que esse aprendizado utiliza as estruturas sociais e
valores éticos vigentes em cada sociedade - para evitar a aceitação
passiva dessa sociedade tal qual é, existe o Teatro do Oprimido,
questionando seus valores e suas estruturas - o TO é subjuntivo,
não imperativo.
A criança deve aprender a viver em sociedade, e aprender a questioná-la.
Os Jogos Teatrais sintetizam a Disciplina e a Liberdade. Todo jogo tem
regras claras que devem ser obedecidas; mas, obedecendo-se às regras,
a invenção é livre e a invenção necessária.
Todo jogo é um aprendizado de Vida; jogo teatral, um aprendizado
de Vida Social. Os Jogos do Teatro do Oprimido são um aprendizado
de Cidadania. Sem Disciplina, não existe Vida Social. Sem liberdade,
não existe Vida.
Como disse um camponês do MST: - "O Teatro do Oprimido é
maravilhoso porque permite que a gente aprenda tudo aquilo que já
sabia!". Aprende, esteticamente - amplia o conhecer, e lança
o conhecedor em busca de novos conheceres.
Aprendemos a aprender!
Temos que ampliar nosso Método, predominantemente teatral: temos
que imaginar um Projeto de Estética do Oprimido que inclua a ativação
de Neurônios Estéticos através do ensino subjuntivo
das Imagens - olhar e ver -, do som e da música - ouvir e escutar
-, da Palavra - poesia e narrativa -, e temos que, em toda essa atividade
estética e social, buscar o seu Sentido Ético, do qual o
seu primeiro elemento é o de Multiplicar o Aprendido. Temos que
invadir a realidade e transformá-la!
O estímulo que se faz em uma área cerebral propaga-se às
áreas circunvizinhas: acordes de violão desenvolvem potencialidades
visuais e não apenas auditivas. Campeões de xadrez estudam
música clássica para melhor imaginarem criativas estratégias.
Einstein tocava violino quando não conseguia prosseguir no seu
trabalho matemático, e voltava à matemática quando,
nos acordes do seu violino, encontrava o estímulo necessário:
a música é o som da matemática, é a matemática
sublimada em sons.
Os Neurônios Estéticos são os mais importantes do
sistema nervoso, segundo a hipótese de que, neles, coexistem os
sentidos com a razão, o concreto com o abstrato: a percepção
estética incorpora a razão e a emoção, juízos
e valores, e não apenas sensações! (14)
Da mesma forma que o esporte expande as potencialidades do corpo, a Arte
expande as do espírito.
As sementes deste Projeto Estético já estão no próprio
Arsenal do Teatro do Oprimido - as Técnicas e os Jogos de Imagem
já são Artes Plásticas - falta extrapolá-las
para a obra de arte concreta; as Técnicas e os Jogos de Ritmos
já são música - falta transformá-los em canções
e sinfonias; as improvisações já produzem literatura:
falta concretizá-la em poemas e narrativas.
Atenção: não se trata de ensinar Solfejo e Canto
Orfeônico, nem obrigar ninguém a cantar a segunda parte do
Hino Nacional, como fui martirizado na minha infância, mas sim de
desenvolver a musicalidade que já possuímos todos.
Não se trata de organizar um Curso Supletivo de Arte que venha
remediar carências da infância. Não se trata de ensinar
desenho, cor e traço, para que desenhem estátuas gregas
ou modelos nus, como na Faculdade, mas sim ajudá-los a ampliar
suas sensibilidades, suas tendências artísticas e seus embrionários
conhecimentos (15).
Buscamos o Belo, como qualquer artista. O Belo que, como escreveu Hegel,
é o luzir da verdade através dos meios sensoriais. A verdade
que se esconde atrás das aparências. Mas não a verdade
hegeliana que revela Deus, e sim aquela que pode ser inventada pelos humanos:
uma Ética Humanística.
Buscamos o Belo que se esconde no coração de cada cidadão,
pois cada cidadão é um artista - cada qual ao seu modo:
mesmo que alguns não sejam capazes de criar um Produto Artístico
estimulante que nos ilumine, todos são capazes de desenvolver um
Processo Estético.
Buscamos a Cultura, não só para compreender e fruir a Cultura
alheia - a Erudição, que é o conhecimento de outras
Culturas! - mas sim para desenvolver a nossa própria identidade:
somos o que fazemos - e se fizermos apenas aquilo que foi inventado pelos
outros, seremos uma prolongação dos outros e não
seremos nós mesmos.
É importante para todos nós o conhecimento da cultura de
outros povos e de outras épocas, ou de estruturas artísticas
completas e bem acabadas, mesmo quando afastadas de nós. Moças
e moços de uma comunidade pobre que aprendam a dançar Valsa
com rigor austríaco, ou um bom Minueto com elegância francesa,
algo aprendem e são esteticamente estimulados, mesmo que a "nobreza
e o equilíbrio dos movimentos" (16)
desta dança nada tenham a ver com as suas vidas cotidianas. Se,
fielmente, encenam uma peça de Molière ou, com igual fidelidade,
aprendem a tocar um Noturno de Chopin, claro que isso só poderá
ampliar os horizontes da sua percepção e esse aprendizado
é maravilhoso.
Nenhuma estrutura de dança, música ou teatro é inocente
ou vazia: todas contêm a visão do mundo de quem a produz
- contém a sua ideologia - que, através da forma artística,
é assimilada e incorporada por quem as pratica.
Camponeses europeus não dançavam Valsas nem Minuetos, que
só eram compatíveis com o lazer dos ricos. É ótimo
que saibamos dançar Minuetos e Valsas, e melhor ainda que descubramos
a dança que o nosso corpo é capaz de criar (17).
Se não criarmos a nossa própria cultura, seremos obedientes
e servis a outras culturas. Criando a nossa própria, as outras
culturas só poderão nos ser benéficas, expandindo
a nossa sensibilidade. O fato de ser quem sou - quando sei quem sou! -
não me impede de admirar os outros, e o que fazem. Se não
sei quem sou... serei cópia.
A Estética do Oprimido é uma proposta que trata de ajudar
os oprimidos a descobrir a Arte descobrindo a sua arte e, nela, descobrindo-se
a si mesmos; a descobrir o mundo, descobrindo o seu mundo e, nele, se
descobrindo.
O TEATRO SUBJUNTIVO
O teatro, usualmente, conjuga a realidade no tempo Presente do Modo Indicativo
- "Eu faço!" A TV, no Modo Imperativo: - "Faça!"
No Teatro do Oprimido, a realidade é conjugada no Modo Subjuntivo,
em dois tempos: no tempo Pretérito Imperfeito - "... se eu
fizesse?" - ou Futuro - "... se eu fizer?" No trabalho
com os jovens -sobretudo quando cumprindo pena em estabelecimentos correcionais!
- mais do que nunca, temos que ser Subjuntivos. Tudo será "se".
Subjuntivo - eis a palavra! O Teatro Subjuntivo - já na própria
construção dos Modelos (18)
que preparam o Teatro Fórum (que já é, por natureza,
subjuntivo, ao propor alternativas) - deve ser acompanhado pelo Teatro
Legislativo (19) para que se extrapolem,
em leis e ações diretas, os conhecimentos adquiridos durante
o trabalho teatral. Ou do Teatro Invisível, para que se intervenha
diretamente na realidade. Ou por uma Ação Concreta, que
a modifique a curto prazo.
O Teatro Subjuntivo é a extensão - à própria
construção do Modelo - da dúvida, da comparação,
da pluralidade de possibilidades de vida e de sociedade, da variedade
de comportamentos e de caracterizações psicológicas.
A METÁFORA: HUMANOS E HOMINÍDEOS
Na Estética do Oprimido concentramos nossos esforços e nossas
preocupações em criar condições para que os
oprimidos possam desenvolver plenamente o seu Mundo Metafórico
- seu pensamento, sua imaginação, sua capacidade de simbolizar,
sonhar, criar alegorias - sem diminuir sua participação
no mundo social, material e concreto.
Ao lado do mundo sensível, significante, queremos desenvolver o
mundo dos significados.
A transformação do artesão - aquele que criava a
peça inteira - em operário, - aquele que realiza uma tarefa
específica sem ter domínio sobre o seu produto final, como
um operário metalúrgico que enfia o parafuso na porca sem
saber se o produto final será um automóvel ou um trator
- tirou do artesão, transformado em operário, grande parte
da sua capacidade de imaginar: tirou o artista que existe em todo artesão.
Os hominídeos se transformaram em seres humanos quando desenvolveram
a imaginação, a linguagem simbólica, a metáfora.
O ser humano criou o que Platão chamava de Mundo das Idéias
Perfeitas, exclusivamente humano, em contraposição ao mundo
imperfeito das realidades sensíveis. Sócrates já
havia estabelecido o conceito de Logos (não o fato, mas o seu significado),
no qual Platão baseou a sua teoria. Aristóteles defendeu
a idéia de que a perfeição estava contida em cada
ser - não era um mundo à parte, desconectado do real: era
o real em movimento.
Os hominídeos, ao se transformarem em seres humanos, fizeram a
diferença entre o cérebro e a mente, a matéria e
o espírito. O cérebro, anatômico, desenvolveu o Córtex,
pressionado pelas novas necessidades intelectuais desse Mundo Subjetivo.
A Arte é a característica mais humana do ser humano: é
a sua capacidade de recriar o mundo. Quando os primeiros habitantes das
cavernas começaram a pintar figuras de bisontes e outros animais
nas paredes de suas casas estavam procedendo a uma Metáfora pictórica.
Não devemos vê-los com olhos modernos: não estavam
decorando seus apartamentos - faziam a Metáfora de recriar os animais,
concretos e ameaçadores, em outro contexto: sua forma pictórica.
Poderiam, assim, estudá-los, pois necessitavam abate-los e comê-los.
Arte é Metáfora. Metáfora, no seu sentido mais amplo,
é uma translação. Qualquer translação.
É a transposição de algo, que existe dentro de um
contexto, para um outro contexto diferente daquele em que se encontra
na vida real. A pintura e a escultura são metafóricas porque,
pelos próprios elementos que utiliza - tintas, tela, ferro, barro,
etc. - já se distanciam da realidade original, criando outra. Com
o cinema acontece o mesmo: já é metafórico o próprio
ato de filmar.
O teatro moderno, quase sempre realista, tende a colar-se à realidade
original. Alguns estilos, porém, pela sua própria apresentação
como Imagem, promovem esse vigoroso distanciamento estético metafórico:
o Nô e o Kabuki japoneses, o Katakali indiano, a Commédia
del´Arte italiana, a Tragédia Grega, os Contadores do nosso
Nordeste, etc.
Só nós, humanos, somos capazes dessas translações.
Este salto, que vai do cérebro físico à consciência,
é tão importante como aquele outro salto, que vai da matéria
inanimada à vida.
Em nossas sociedades, a fim de melhor oprimirem os oprimidos, os opressores
procuram reduzir a vida simbólica dos oprimidos, sua imaginação,
sua criatividade, obrigando-os ao trabalho mecânico no qual são
substituíveis por quaisquer outros, em que seus nomes valem menos
do que seus números: a qualidade torna-se quantidade.
O lazer dos oprimidos, quando existe, é povoado de imagens - mediáticas
e outras - que visam a re-transformar humanos em hominídeos, contrariando
a evolução da espécie.
Em cada ser humano um hominídeo espreita: não nos deixemos
cair em tentações. Sejamos metafóricos - sejamos
gente!
A Estética do Oprimido visa o fortalecimento desenvolto e livre
da atividade metafórica, das linguagens simbólicas, da inteligência.
Visa a expansão da percepção que temos do Mundo,
da nossa sensibilidade.
Isso se faz através da Palavra, da Imagem e do Som, guiados por
uma Ética humanística.
O PROJETO PROMETEU
No início deste ensaio falamos em nomear Conjuntos - nomeemos,
pois, este conjunto estético: Projeto Prometeu, em homenagem ao
Titã que ensinou os humanos a fazer o fogo, que havia roubado aos
deuses egoístas que o queriam só para si.
Este Projeto visa desenvolver, nos integrantes dos nossos grupos populares,
ou de qualquer grupo popular organizado, todas as formas estéticas
de percepção da realidade. Seu foco primordial é
o Processo Estético que, desejamos, possa chegar a um Produto Artístico
que possamos compartir.
Nele, quatro são as vertentes principais:
A PALAVRA
Nosso objetivo não é o de transformar todo cidadão
em escritor de best-sellers de aeroporto, mas sim de permitir que todos
tenham domínio sobre a maior invenção humana: a palavra,
a linguagem simbólica.
As palavras, justamente por serem símbolos - uma coisa que está
em lugar de outra - precisam ser preenchidas com as esperanças,
desejos, necessidades, experiências de vida, conhecimentos de cada
cidadão que deseja transmitir suas idéias e emoções,
que deseja o diálogo. Não devem ser impostas á força
como se o significado de cada palavra fosse inquestionável e imutável.
A palavra é uma coisa, e o sentido que lhe damos é outra
coisa, nem sempre coincidentes.
Sabemos que toda palavra vem sempre carregada com os desejos do emissor.
Sabemos, também, que cada receptor tem as suas próprias
estruturas de recepção-tradução da palavra
emitida pelo outro.
Quando uma empregada doméstica ouve a palavra Maria, essa palavra
vem associada a uma ordem imperativa: Maria, traz o jantar. Maria, lava
a roupa; Maria, varre a casa; Maria, faz isso, faz aquilo.
Maria passa a ser o prenúncio de uma ordem. Um bater de continência
em posição de sentido!
Quando, porém, Maria escreve o seu próprio nome, porque
sobre si mesma muita coisa quer dizer, ela se re-descobre e pode associar
seu nome, Maria, ao amor, ao prazer, aos seus desejos, sua felicidade.
Pode descobri-se como ser humano pleno.
Assumir seu nome - e dar a ele seus próprios significados - é
uma maneira de se assumir como humano, e de existir como sujeito.
Escrever é uma maneira de dominar a palavra, ao invés de
ser por ela dominado.
Neste Capítulo do Projeto Prometeu, são três suas
vertentes principais:
1) O QUE MAIS ME IMPRESSIONOU NOS ÚLTIMOS ANOS - os participantes
são convidados a escreverem uma curta narrativa sobre um fato pessoal,
íntimo, ou, pelo contrário, amplo, de interesse nacional,
impossível de esquecer. Ao contrário da Declaração
de Identidade, voltada para o interior do sujeito, esta é uma oportunidade
para se refletir sobre uma visão panorâmica que cada um tem
do mundo, próximo ou distante.
Sugestão - Uma prática interessante consiste em colocar
na parede, ou fazer circular entre os presentes, durante um tempo suficiente,
todos os textos escritos, sem que conste a autoria da cada um. Após
o que se perguntará qual foi o texto que mais impressionou a cada
participante e por quê. Um a um, devem dizer qual o foi esse texto,
e as razões da impressão ou da emoção causada.
Só então se perguntará quem escreveu cada texto,
e se pedirá que o autor comente sobre o que achou dos comentários
que foram feitos sobre a sua escrita.
2) DECLARAÇÃO DE IDENTIDADE: cada participante deverá,
três vezes, declarar em algumas linhas quem é, tendo, porém,
destinatários diferentes: a pessoa amada, a vizinha, a pessoa da
qual depende o seu emprego ou sua função, o presidente do
país ou uma outra autoridade, ou ao povo em geral.
A cada vez que declara ser quem é, como a nossa identidade também
nos é dada pela relação com os outros - nenhum de
nós está encerrado dentro de si mesmo - o escritor descobre
dentro de si algumas identidades que são suas, porém estão
em desuso, ou são mesmo insuspeitadas. Descobre a multiplicidade
e a riqueza do seu ser.
A Declaração de Identidade significa um salto dentro de
si mesmo.
3) POESIA - Cada participante deverá escrever um poema, seguindo
as regras da sua própria intuição. Como estímulo,
podemos oferecer as seguintes etapas, bem simples:
a. O participante escolhe um tema que o emocione - a emoção
é necessária. Este tema pode ser os olhos da pessoa amada
ou um buraco no sapato; o sorriso de um bebê ou os preços
do supermercado;
b. Em seguida, deve escrever toda uma página sobre esse tema, com
tudo que desperta a emoção do autor e suas reflexões;
as frases devem ser menores do que a largura da página;
c. Na próxima etapa, deve eliminar todas as palavras inúteis
ou de pouca utilidade, como são em geral, em português, os
artigos e os advérbios terminados em "mente" que só
enxundiam ass frases e os versos;
d. O participante procura organizar a frase de tal maneira a criar um
ritmo na leitura, na sucessão de versos;
e. Finalizando, polindo, deliciando-se com seus escritos, o poeta deve
substituir, quando necessário, a última palavra de cada
frase - verso - de forma a criar uma rima, se for esse o seu desejo, mesmo
sabendo que rimas não são necessárias à poesia.
f. Eis o poema.
Se este processo não der resultados, inventem outros: todos devem
ter consciência que todas as regras podem ser rompidas, inclusive
estas. Em arte, regras são sugestões e não leis imperativas.
A IMAGEM
Os participantes deverão desenvolver sua capacidade de ver e não
apenas olhar. A criação de novas imagens, produzidas pela
nossa mão, e não pela natureza nem pelas máquinas,
dará a cada um a idéia e a sensação de que
o mundo pode ser re-criado, refeito: será uma forma de desenvolver
a capacidade de cada um de modificar a sua realidade e de ver a realidade,
tal qual existe, como sendo apenas uma forma que essa realidade assumiu,
quando poderia ter tomado milhões de outras formas.
O participante intervem para mudar a realidade. Trata-se de uma forma
de se dominar a realidade como quando os primeiros pintores rupestres
pintavam bisontes, ursos e mamutes nas paredes de suas cavernas com a
intenção, não apenas de admirar sua própria
obra pictórica, mas para melhor estudar esses animais ferozes.
Embora eu não seja testemunha ocular da História, juro que
os demais cavernícolas se juntavam em torno do pintor para estudarem
formas de atacar as feras: a pintura estimulava a mímica, o teatro,
etc.
A pintura e a escultura são formas de se re-estruturar o mundo,
de re-inventá-lo - é natural que pintores e escultores sintam-se
um pouco deificados, pois refazem e corrigem o trabalho da divindade...
As atividades básicas de Imagem deverão ser:
1) ESCULTURA E PINTURA - Inicialmente, cada grupo deverá produzir
uma criação coletiva sob o título de SER HUMANO NO
LIXO, utilizando para isso todos os elementos do lixo limpo encontrado
em suas comunidades ou locais de trabalho. Cada escultura deverá
mostrar uma ou mais figuras humanas no trabalho, no lazer, no amor, em
diálogo, na solidão, etc.
Além do lixo limpo, poderão usar cola, barbantes, arames,
etc., que sustentem a escultura. Deverão fazer também pinturas
com o mesmo tema. Este é o ponto de partida: outros temas devem
ser buscados dentro do âmbito de interesse do grupo participante.
Outros temas podem ser abstratos (a felicidade, o futuro...) ou ainda
mais concretos (meu local de trabalho, etc.);
2) FOTOGRAFIA - O primeiro tema deverá ser AS MÃOS, que
são, depois do cérebro, o que mais de essencialmente humano
existe em cada um de nós.
Cada participante de cada grupo deverá fazer - ou pedir que alguém
o faça para si - cinco fotografias das suas próprias mãos,
ou das mãos das pessoas que, como ele/ela, trabalham na mesma profissão,
ou vivem na mesma comunidade. É importante que seja um pequeno
número de fotos e não uma quantidade indeterminada, porque
cada participante buscará mostrar a extensão das suas preocupações
e vivências, com o mínimo de fotos.
Que fazem suas mãos? Trabalham com a enxada, com o volante de um
carro, a vassoura, ou com o teclado de um computador ou piano? Acaricia
um rosto, um copo, um corpo? Lavam pratos, agridem ou jogam cartas? Traduzem
em gestos seus pensamentos?
Não é necessário que as fotos sejam feitas pelo próprio
participante, mas o fotógrafo deve fazer exatamente aquilo que
o fotografado quer, e não o que ele, fotógrafo, gostaria
de fazer. O fotógrafo traz apenas o seu conhecimento técnico
de como usar a câmera para que a foto reproduza o desejado pelo
participante.
A temática poderá incluir palavras como: opressão,
a casa onde moro, família, o mundo, meu trabalho, meu lazer, etc.
O tema é importante, porém mais importante é o diálogo
que se deve instaurar entre todos os participantes de cada grupo sobre
as imagens produzidas, as formas de percepção de cada imagem,
as idéias que cada imagem provoca, lembranças, desejos...
3) RE-FORMANDO A FORMA - Apresenta-se uma figura bem conhecida, como a
bandeira nacional, a silhueta de uma garrafa de refrigerante ou a de um
acidente geográfico bem conhecido (Pão de Açúcar,
Corcovado)... ou o símbolo de um fast-food, a forma de um campo
de futebol, o perfil de uma cidade, um item publicitário em que
se associa um corpo de mulher com uma bebida alcoólica, etc. Os
participantes deverão refazê-la ou transformá-la -
colorindo, re-estruturando suas linhas, cortando ou adicionando linhas
e cores -, de maneira a dar uma opinião sobre a figura e seu significado,
as idéias e as emoções que desperta.
O SOM
A Música é a forma pela qual o ser humano se relaciona com
o Universo, com seus ritmos, melodias e sons aleatórios. A Música
é o contato do ser humano com o seu próprio coração
e com o Cosmos. Justamente por isso, o poder econômico encarcera
a música em seus festivais, empresas fonográficas, distribuidoras,
etc., favorecendo sempre aqueles ritmos padronizados que podem ser facilmente
dominados por esse poder. Oitenta por cento da música que se ouve
pelas rádios tem a missão de entorpecer a mente dos seus
ouvintes. Os ritmos alucinantes têm precisamente a missão
de alucinar, que é uma das melhores formas de se esconder a realidade
opressiva.
Na Estética do Oprimido o que se busca não é aprender
os ritmos que andam por aí, à solta, tocando nas rádios,
mas sim redescobrir e conectar-se com os ritmos internos de cada um de
nós, com os ritmos da natureza, do trabalho e da vida social.
A partir dos jogos "A Imagem da Hora", "Jogo das Profissões",
"Máscaras e Rituais", "A Dança Do Trabalho",
os participantes poderão escolher qualquer atividade repetitiva
de suas vidas profissionais ou cotidianas, e transformá-las em
dança.
a) Mostram os gestos mudos repetitivos, mecanizados, inconscientes às
vezes, do seu trabalho profissional ou de um segmento de suas vidas cotidianas;
b) ampliam esses gestos, eliminando os detalhes redundantes e magnificando
os que lhes pareçam essenciais, formando-se, assim, uma seqüência
repetitiva que contenha todos os movimentos essenciais;
c) lentamente, transformam o movimento em dança, introduzindo ritmo;
d) eles próprios ou outros participantes deverão compor
a música que esses movimentos sugerem.
1) Os participantes deverão criar ritmos e melodias a partir do
que percebe no seu corpo em repouso e nas diferentes atividades diárias,
e nas relações entre o seu corpo e o mundo exterior. É
importante evitar ritmos bem conhecidos.
2) Utilizando objetos do seu trabalho, transformá-los em instrumentos
musicais. Todos os instrumentos musicais que existem foram construídos,
não se encontravam prontos na natureza: muitos mais podem ainda
ser inventados.
A ÉTICA
O Teatro do Oprimido é um teatro ético e, nele, nada pode
ser feito sem que se saiba por que, e para quê. Os participantes
deste Projeto Prometeu devem saber porque fazem o que fazem. O significado
ético de cada ação é tão importante
como a ação em si mesma.
A TEORIA - Não se trata de dar aulas sobre Ética, mas de
estudar e discutir momentos essenciais da Humanidade quando decisões
éticas, ou antiéticas, de grande importância histórica
e imensas conseqüências sociais, foram tomadas. Serão
palestras, testemunhos, teses, diálogos, etc. A título de
exemplo, poderíamos citar alguns momentos importantes da história
mundial, como a época dos filósofos pré-Socráticos,
que revelavam a inquietude dos seres humanos em relação
ao sentido de nossas vidas, às relações inter-humanas
e à substância do Universo; as Invasões Ibéricas
no século XVI na América Central e do Sul, que resultaram
no genocídio de dezenas de civilizações indígenas;
o acordo de Bretton Woods, que instituiu o dólar como moeda universal;
a guerra do Golfo e a do Iraque, comparadas com a guerra do Vietnã.
Temas dos quais muito se fala, mas pouco se sabe.
A PRÁTICA; A SOLIDARIEDADE - A superioridade moral dos Bombeiros
em relação aos PMs, no Brasil, deve-se a vários fatores,
sendo que um dos mais importantes é o conteúdo dos ensinamentos
que recebem os soldados de uma e de outra corporações. PMs
aprendem a atirar em alvos semoventes, aprendem a prender, bater, destruir;
os bombeiros, além de apagar o fogo, aprendem os primeiros socorros,
aprendem a salvar vidas, aprendem a prestar serviços à comunidade.
É no fazer que o ser humano se faz.
Esta parte do capítulo Ética deverá ser constituída
por ensinamentos práticos de solidariedade, de acordo com as necessidades
reais das comunidades dos participantes - e deverá ser realmente
posta em prática e não apenas aprendida!!!
Cada participante deverá colaborar concretamente para alguma obra
ou ação coletiva de sua comunidade que esteja sendo feita.
Hoje, os muitos grupos que praticam o TO na Índia, os Jana Sanskriti,
logo depois de cada espetáculo em uma comunidade, perguntam em
que podem ajudar essa comunidade e ajudam mesmo: faz parte do seu fazer
teatral.
A MULTIPLICAÇÃO - Cada grupo deverá organizar outro
ou outros pequenos grupos ao quais possam transmitir os ensinamentos recebidos,
dentro da idéia de que só aprende quem ensina, e buscando
o Efeito Multiplicador.
Isto é uma verdade científica, neurológica: ao aprender,
o indivíduo mobiliza os neurônios necessários à
percepção e à retenção do que lhe é
ensinado; ao ensinar, mobiliza circuitos neurônicos de muitas outras
áreas, expande e fixa o seu conhecimento, re-avalia o aprendido.
Esta é apenas uma proposta inicial. Para que seus resultados sejam
avaliados e sua estrutura reorganizada, é claro que deveremos,
durante anos, realizar intensos trabalhos e experiências nos mais
diversos campos, cidades e países onde atua o Teatro do Oprimido.
Notas
1. "El arroyo de la sierra me complace más que el mar"
- ("O riacho da montanha me agrada mais que o mar") - versos
de Guantanamera, poema de José Marti, poeta e revolucionário
cubano, herói da guerra de libertação nacional contra
os espanhóis. Volver
2. Os Conjuntos se referem apenas à percepção sensorial
do mundo e se organizam em Estruturas ficcionais, imaginárias,
que se constituem através da intervenção da palavra
e dos símbolos - da palavra gramatical, como Léxico e, sobretudo,
como Sintaxe. Estruturas são Conjuntos de Conjuntos inter-relacionados
por analogia ou complementaridade: Estrutura Moral, Política, Social,
Familiar, Ritual, Comportamental, etc.
As Estruturas se sustentam pelas relações de Poder, que
representam, no campo humano e animal, o mesmo papel das forças
do Universo (gravitacional, eletromagnética, etc.) Todas as relações
humanas são estruturadas pelas relações de Poder
em suas variadas formas - políticas, sociais, psicológicas,
culturais, carismáticas, sexuais, etc. - que determinam valores.
Estes valores, que são abstrações, determinam comportamentos
concretos. Volver
3. Crátilo: discípulo de Heráclito, filósofo
grego pré-socrático, século V-VI AC, que dizia que
ninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes porque, na segunda,
já serão outras águas que por ele estarão
passando, já não será o mesmo rio. Crátilo
extremava Heráclito, dizendo que ninguém pode atravessar
o mesmo rio sequer uma única vez, pois que as águas estarão
sempre em movimento: em que água estará entrando?
Eu extremo Crátilo: quem sou eu, aquele que atravessa? Volver
4. Os significados dos significantes (que são as palavras), são
menos importantes do que o significado de significar: quando significo
algo a alguém, além dos significantes (as palavras) que
pronuncio, uso meu rosto, minha voz, meu corpo: este conjunto de significantes
integra o meu significar que não está presente em nenhum
dos elementos que o compõem - apenas no Conjunto de todos eles.
Os Conjuntos possuem qualidades de que suas partes carecem. Volver
5. "Nunca eu tivera querido/ dizer palavra tão louca. / Bateu-me
o vento na boca / e depois no teu ouvido./ Levou somente a palavra / deixou
ficar o sentido. / O sentido está guardado/ no rosto com que te
miro, / neste perdido suspiro / que te segue alucinado, / no meu sorriso
suspenso, / como um beijo malogrado." - Canção, Cecília
Meireles Volver
6. Ao encontrar o Ser em sua unicidade - o artista, ao produzir sua obra;
o espectador, ao frui-la; ou o amante, ao amar - defrontam-se com o Infinito.
O objeto do amor é sempre Uno, porém toda Unicidade é
um Conjunto, como veremos mais adiante: aí reside o Infinito, que
é o encontro impossível em que cada Unicidade é um
novo Universo (Nota 9, pg 8).
Algumas formas dessas estruturas psicológicas genericamente chamadas
de Loucura fazem quase o mesmo: desintegram os Conjuntos e se perdem,
desesperados, na percepção de cada um dos seres e coisas
que o compõem, sem que sejam capazes de formar novos Conjuntos.
Doentes há que vêem os poros assustadores que nos tornam
vulneráveis e penetráveis, e são incapazes de ver
a pele que nos protege o braço. Ou formam Conjuntos de autonomia
própria, que não são referenciáveis nem ao
real nem à nossa percepção coletiva. Volver
7. Nessa busca, encontra o Uno ou a maneira Una de criar novos Conjuntos
que só o artista pôde perceber - à moda do louco -
mas que podemos todos, através da sua arte, fruir. E, nela nos
encontramos a nós mesmos, como Fernando Pessoa: "Ninguém
a outro ama, se não que ama o que de si há nele, ou é
suposto!" Volver
8. Da mesma forma que o amor não é "...imortal, posto
que é chama..." (Vinicius de Moraes) também a fruição
da obra de arte não é a mesma a cada vez que com ela nos
encontramos. Podemos descobri-la a cada vez ou, para sempre, perdê-la. Volver
9. A árvore não deve esconder a floresta, como disse o
poeta, mas a floresta também não tem o direito de esconder
cada árvore que nela se perde; nem cada arbusto, nem cada ramo
de flores, nem cada pétala de cada flor. Volver
10. Quando, através do Amor ou da Arte, penetramos na unicidade
de um Ser, penetramos no Infinito. Seria tolo imaginar que o Infinito
seria apenas infinito para fora e para longe... Se é verdade que
o Infinito é, ou existe, não pode tão-pouco ter limites
para dentro: o Infinito não é apenas Infinito para além
das estrelas e das Galáxias, mas também para dentro de cada
átomo do nosso corpo. O infinitamente grande é exatamente
igual ao infinitamente pequeno. O Infinito destrói os conceitos
de grande e pequeno, longe e perto. Tudo está muito perto porque
tudo é muito longe, e é pequeno por ser tão grande.
Em cada fio dos meus cabelos existem trilhões de Vias Lácteas
e de Sistemas Planetários, objetos siderais atraídos por
vorazes buracos negros. Não podemos cair no mesmo erro que Parmênides
(515 A.C. - ?), o filósofo grego que afirmava que o Universo era
infinito em todas as direções e, portanto, teria um ponto
de partida, e seria esférico... Ora, se começava em um ponto
determinado e tinha uma forma precisa - a esfera - seria finito, pois
a forma é o limite do Ser com o Não-Ser e, como sabemos,
o Não-Ser não é... Não é mesmo?
Toda unidade é múltipla, em todos os sentidos e em todas
as direções - isso é o Infinito. Os Conjuntos conjugam
Unicidades mas cada Unicidade é um Conjunto: cada á-tomo
(o in-divisível) divide-se em prótons, nêutrons, elétrons,
etc. Cada próton... O Infinito é a vertigem do pensamento! Volver
11. Famoso massacre em uma escola dos Estados Unidos onde um estudante,
menor de idade, matou centenas de colegas seus e professores. Volver
12. Nada do que aqui se diz deve ser tomado em um sentido absoluto -
é claro e evidente que exceções existem e muitas.
Existem nos morros cariocas muitos jovens rebeldes ao tráfico,
como também nem basta assistir a um filme de Swartz-qualquer-coisa
para se tornar um malfeitor. Há os que resistem. Volver
13. A extrema delicadeza e a complexidade das células chamadas
neurônios obrigou a Natureza a fazer uma exceção curiosa:
todos os demais ossos do nosso corpo estão dentro do próprio
corpo e lhe dão sustento; na cabeça, porém, a ossatura
envolve o cérebro e lhe dá proteção. Alguma
coisa de muito importante deve haver lá dentro. Volver
14. Os neurônios motores que nos permitem mover o dedão
do pé, são bem mais simples. Lula perdeu o dedo mindinho
da mão esquerda, foi eleito Presidente da República, e passa
bem; Roosevelt perdeu a capacidade motora de suas pernas, mas continuou
dirigindo o seu país; o cientista Stephen Hawking, imobilizado
em uma cadeira de rodas, continua escrevendo livros. Mas, se algum deles
tivesse perdido um pedaço de cérebro, como alguns presidentes
de repúblicas que conhecemos, o mundo estaria à beira de
uma catástrofe... como de fato está. Volver
15. Quando o CTO começou suas atividades no Rio em 1986, em comunidades
pobres, eram poucas as ONGs que se dedicavam a tarefas similares: hoje,
muitas se dedicam a realizar programas artísticos semelhantes aos
que já existem para a classe média, preparando atores e
bailarinos para a TV, teatro e cinema. São comuns as reportagens
sobre jovens de excepcional talento, revelados nos morros, que vão
fazer carreira em telenovelas, bailarinos selecionados para continuar
seus estudos em Nova York e até no Bolshoi de Moscou. Isso tem
acontecido, é ótimo que aconteça, porém não
é nossa função, nem faz parte dos nossos objetivos.
Essa aplicação mecânica, em comunidades pobres, dos
mesmos programas e métodos que são utilizados pela classe
média e alta, traz no seu bojo a mesma ideologia competitiva e
o mesmo elogio ao mais capaz, ao excepcional: a ideologia do primeiro
lugar, do campeão.
Nossa função, bem ao contrário, é preparar
os participantes dos nossos grupos para serem Multiplicadores de Arte,
segundo a nossa máxima de que "Só aprende quem ensina!",
levando em conta que nosso objetivo é atingir todo o tecido social
e não apenas revelar talentos excepcionais. Volver
16. Definição do Aurélio. Volver
17. Julián Boal, em seu ensaio A Dança do Trabalho, cita
pesquisadores que mostram que os movimentos realizados durante o trabalho
foram, em muitos casos, a origem de danças mundialmente conhecidas,
como a claquete, que vem do som dos passos dos escravos norte-americanos,
quando passeavam no chão de madeira das casas dos seus senhores,
calçando sapatos com ruidosas "ferradurinhas", ou os
graciosos movimentos helicoidais das mãos das bailarinas andaluzas
dançando flamenco, originados nos movimentos de colher os frutos
das árvores. Volver
18 Modelo - uma cena ou peça que serve de base para a discussão
teatral, em que os spect-atores entram em cena, substituindo o protagonista,
ensaiam alternativas à sua situação de opressão,
intervêem com a originalidade do seu pensamento e da sua sensibilidade,
e utilizam o mesmo Espaço Estético (palco, arena, picadeiro,
espaço em uma rua ou praça) que usam os atores, e a mesma
linguagem teatral. A esta forma de debate teatral dá-se o nome
de Teatro-Fórum, uma das partes do teatro do Oprimido. Volver
19 Teatro Legislativo - forma do Teatro do Oprimido que busca inscrever
na Lei os desejos da população organizada. Livro de Augusto
Boal editado pela Civilização Brasileira. Volver
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