PORTUGAL. O Intelectual hoje: "Maître à penser" ou Elo de Comunicaçao?
Por Helder Costa
Muito se discute nos dias de hoje sobre o papel do intelectual.
Como se sabe, quando se discute sobre a função de qualquer coisa - objecto, profissão, sentimentos...- isso significa normalmente que essa coisa não existe ou deixou de ter especial relevância.
Será o que se passa com o intelectual?
Claro que também pode dar-se o caso de os centros de manipulação da opinião pública recearem a acção do intelectual e terem lançado campanhas de desprestígio contra essa classe/categoria de intervenção social.
E, afinal, o que se passa hoje com o intelectual?
Continua na tradição iniciada com Zola no affaire Dreyfus através do texto "J'Accuse"? Assume-se como um interventor e paladino dos direitos cívicos? Combate tiranias e prepotências? Defende a educação, a instrução, a igualdade de direitos para todos?
Ou transformou-se (ou voltou a ser) o elemento decorativo do Poder e o servidor do Príncipe?
Também sabemos que sempre haverá essas duas categorias de intelectuais.
O que parece surgir hoje é uma espécie de perplexidade sobre a verdadeira função e actuação do exercício da crítica.
Procuramos o intelectual "Maître à penser", omnipotente, omnisciente e omnipresente, um género de Deus ou anjo laico?
Perante a massificação do ensino baixamos o grau de exigência dos estudos e das matérias?
Talvez, nos dias de hoje, seja necessário aprofundar e desenvolver uma espécie de 3ª via: o intelectual não pode nem deve baixar o seu nível de conhecimentos e exigência, e, simultaneamente, deve estar atento à suprema responsabilidade de saber fazer passar as suas ideias e o seu método de trabalho.
Estas são as conclusões que retirei de um já longo trabalho com grupos de teatro e Associações desde Portugal, emigrantes e exilados em França e noutros países da Europa, Moçambique, Galiza e outras terras de Espanha, Dinamarca, Brasil, etc.
Recordo a primeira experiência que me elucidou sobre este método:
Teatro Operário de Paris.
Paris, fim dos anos 60.
Um milhão de portugueses, fugidos à fome, à Pide, à guerra colonial, e também alguns que, muito simplesmente, procuravam a liberdade de viver e de pensar.
A interrogação para os que já tinham actividade política em Portugal, e que tinham aceitado essa graciosa "bolsa de estudos" do Salazar, era o que fazer com essa enorme massa de emigrantes.
Ao lado da actividade política partidária, era evidente que era necessário criar formas de Associativismo, de animação cultural e de apoio social e educacional.
Entre as iniciativas mais influentes contava-se a Liga Portuguesa para o Ensino, apoiada pela sua congénere Francesa, de espírito laico e Republicano.
Aí se desenvolveu um grupo de teatro, se criou um jornal, e também aí a acção se foi estiolando como consequência de guerras entre grupos políticos.
As divergências eram várias entre os exilados.
Falando de teatro, havia quem pensasse fazer peças que fossem autorizadas pela Censura em Portugal (!); outros, apresentavam peças no centro de Paris, destinadas à intelectualidade Portuguesa emigrada e aos seus amigos Franceses; e até havia, uma escória (que eu me recuso a pôr ao mesmo nível destes "caminhos diferentes" com quem estou em desacordo), que tentava (e conseguia) obter patrocínios do consulado de Portugal para formar "um teatro para os Portugueses" -tentativa sempre falhada, tanta era a incompetência dos seus "empreendedores" e a impopularidade do projecto.
O começo do grupo
O minúsculo grupo que arrancou com a ideia do "Teatro Operário" tinha outros planos: era preciso levar o teatro, a música, a cultura, a arte, a agitação política, os jornais anti-fascistas, a alfabetização, a ajuda social, a quem mais precisava de tudo isso: as centenas de milhares de emigrantes que se empilhavam em bairros de lata e "foyers" miseráveis.
E 1970, com "Histórias para serem contadas" de Oswaldo Dragún, assinalou a nossa estreia.
O trabalho era difícil? Era. Principalmente, porque era preciso vencer o medo dos emigrantes, e combater os provocadores que, desde a estreia do grupo apareciam com bandeirinhas portuguesas (como se vê, também tinham tendência para a teatralidade!), tentando expulsar os "agitadores que tinham terminado com o belo sossego daquele recanto". Nada feito. O público dava todo o apoio para nós refilarmos, e não perdíamos a ocasião...
Resultado: no fim do espectáculo, havia debate e convidavam-se eventuais interessados em aderir ao trabalho de teatro. Uns, ficavam a a organizar um grupo nesse local, e para isso, um dos elementos do " Teatro Operário" reservava umas noites por semana para dar o primeiro empurrão aos novos artistas. Outros, mais livres, aderiam ao "Teatro Operário" e passavam a fazer parte do grupo.
Em 6 meses criaram-se 2 grupos nos arredores, e o grupo passou de 5 para 17 elementos. E, ao mesmo tempo, deram-se 40 espectáculos.
Convém informar que toda esta gente não recebia nenhum subsídio da Secretaria de Estado da Cultura, nem de nenhum partido político nacional ou estrangeiro; os espectáculos eram gratuitos, e todas as despesas eram suportadas militantemente por cada elemento do grupo; convém também informar que isto não era nada de excepcional, dado que todos os elementos eram trabalhadores com salário garantido.
(E os desempregados, que também havia, eram ajudados como calhava, pelo colectivo)
Lá diz o povo, "quem corre por gosto, não cansa".
Mas isso já é outra conversa.
18 de Janeiro de 1934
Este foi o título do 2º espectáculo, já seguindo a linha da tentativa de criação colectiva.
Porquê procurar a "criação colectiva"?
Porque nenhum de nós tinha experiência suficiente para definir uma linha dramatúrgica ou estética, e fundamentalmente porque o trabalho no teatro tinha também objectivos pedagógicos (melhor dizendo, de politização, de tentativa de criar futuros militantes anti-fascistas).
E foi assim que se escolheu estudar essa data do movimento revolucionário português, um acontecimento único: os operários da Marinha Grande, reagindo contra a fascização dos Sindicatos ordenada por Salazar, prenderam a Guarda Republicana e o chefe dos Correios, e durante algumas horas implantaram o soviete da Marinha Grande!
A repressão foi implacável, e muitos terminaram os seus dias no Tarrafal.
Como se depreende pelo tema e seu resultado, não poderia haver a glorificação cega da acção; mas era necessário, nesses tempos de absoluta passividade partidária e cívica, dar a conhecer marcos da luta popular para que as massas se mobilizassem e começassem a criar a consciência da necessidade da revolta. Mesmo que fossem derrotas.
Começou-se pelo princípio: recolha dos documentos da época, tanto de militantes que tinham participado, como de textos oficiais do Governo, discursos de Salazar, etc.
Seguiu-se a sub-divisão do grupo em pequenas equipas, responsáveis pela escrita de cenas previamente discutidas e seleccionadas.
E depois, os ensaios, onde tudo era re-discutido e posto em causa... até à gloriosa estreia em 1971, num centro de apoio ao bairro de lata de Nanterre (Paris).
Nessa altura, já começávamos a ter uma espécie de rede por onde circulávamos com as peças: foyers, casas de cultura, clubes portugueses (que ajudávamos a construír e que, em muitos casos, estavam ligados a igrejas católicas ou protestantes), sindicatos...
Com o 25 de Abril, esta peça teve ampla divulgação com várias montagens em meios Universitários e Associações populares, o que demonstra a verdade do que julgávamos importante: divulgar momentos da História que sempre tinham sido ocultados pelo fascismo.
O Soldado
Qual era o problema nº 1 da nossa juventude, nessa época?
Sem dúvida nenhuma, a Guerra Colonial.
Centenas de milhares de famílias tinham fugido para a emigração para salvar os filhos da ida para a guerra, e contavam-se por milhares os refractários e desertores que procuravam asilo por toda a Europa.
Era evidente que tínhamos de tocar esse tema, e foi o nosso trabalho seguinte.
O sistema foi o mesmo - investigação, leitura atenta dos magníficos textos racistas de Kaulza de Arriaga, consulta de documentação dos movimentos de libertação, particularmente da Mensagem aos Soldados Portugueses de Samora Machel, texto do Manifesto dos Soldados Portugueses (apelando à deserção com armas), amplamente distribuído nos quartéis em Portugal e Colónias, e testemunhos ao vivo dos que tinham tido as experiências de deserção ou de guerra.
Com esta peça deu-se mais um avanço na recusa do carácter propagandístico e na forma naturalista; fomos percebendo que o público popular era extremamente inteligente na percepção das contradições, e sensível e aberto à inovação estética.
(Claro que não era por acaso que Rosa Ramalho e ceramistas do Norte cultivam o fantástico, que António Aleixo consegue infiltrar filosofia no pobre enquadramento da quadra, que a Arte Africana influenciou Picasso...que...que...).
E assim, com estas experiências bem práticas e bem vividas, fomos aprendendo a perceber a diferença entre o popular e o populismo, e a arriscar cada vez mais numa linha depurada de espectáculo, leve, sem maquinaria excessiva, investigando a metáfora popular, assente no humor e na sátira.
"O Soldado", estreado no dia 25 de Dezembro de 1972 na Maison des Jeunes et de la Culture de FRESNES, teve uma carreira brilhante por toda a França e deslocações a Bélgica, Holanda, Luxemburgo, Dinamarca e Suécia (onde as rádios e televisões assinalaram a nossa passagem com entrevistas e gravações).
Com o "milagre de Abril", muitos voltaram para casa, para continuar a luta pela liberdade e pela democracia.
Mas os que ficaram ainda montaram a peça que estava em ensaios desde 1973: "A terra a quem a trabalha!".
Que raio este Teatro Operário! Parece que adivinhava as lutas que se iriam passar no nosso meio rural!
Termino citando um excerto de um texto que escrevi para introdução de uma edição da Centelha sobre o "Teatro Operário":
(...) saber divertir e saber fazer rir, tem a ver com a procura de uma técnica emocional. Mas nós não queremos que o nosso público esteja perante os nossos espectáculos como se estivesse a ouvir anedotas. (...) excluídos o slogan e o discurso, a lição professoral e enfadonha, a angustia, o pessimismo e o derrotismo, temos de saber comunicar de forma dialéctica e contraditória os dados, informações e emoções indispensáveis para que os cérebros e sensibilidades se abram ao que propomos.(....)
Como? Talvez seguindo uma opinião de Brecht:
" Se o actor não quer ser nem um papagaio nem um macaco de imitação, precisa de assimilar os conhecimentos da sua época sobre a vida social participando na luta de classes".
Aprofundando mais os problemas do meu predominante sector de trabalho, o Teatro, reflecti sobre a eterna questão da "Crise". Julgo que este debate é extensivo a qualquer ramo de actividade intelectual nos dias de hoje, e por isso passo a expor algumas reflexões sobre a nossa " Crise", e também sobre as nossas culpas com o actual estado de coisas.
A "crise" do Teatro
Na muito desde sempre falada "crise" do Teatro, esquece-se frequentemente que a CRISE, qualquer crise, é sempre um ponto de ruptura de uma falsa estabilidade.
Crise pressupõe que se vai operar qualquer modificação no status quo.
Crise é, portanto, fonte de movimento e nunca de estagnação.
Claro que nestas coisas do Teatro como em qualquer situação da vida, há a posição passiva e a activa; ou seja, há os que reagem e ensaiam soluções, e há os que aceitam porque "afinal, a coisa não está tão mal", "enquanto o pau vai e vem, folgam as costas", e outras frases chamadas de prudência e bom senso que nos têm conduzido a muitos becos sem saída.
O que se passou com o Teatro? Baixou o público? Sim, é verdade. E baixou em relação a todas as formas de espectáculo, excepto concertos de rock e outras manifestações colectivas que sublimam pela massificação a necessidade social de encontrar e fazer ou refazer grupos.
E o público também baixou por razões de ordem económica e porque prefere -precisamente porque a crise é mais geral, de valores, conceitos, de segurança, até de programação televisiva- , consumir tempo e dinheiro em restaurantes modestos ou de luxo, falando pela noite fora, rindo, divertindo-se e, evidentemente, discutindo a Crise.
Outro contributo muito importante para a Crise é a política oficial de Cultura (pelo menos, na Europa).
O teatro foi ficando asséptico, sem alma e sem cor, nos Teatros Nacionais e em algumas companhias transformadas em "templos" de produções caríssimas. O que implica, pelos temas e pelos preços, a exclusão de amplas camadas da população mais carenciada.
Diz-se que é para prestigiar o teatro. Claro que é falso. Do que se trata é de transformá-lo num arremedo premonitório da decadência da opera. Que também foi afastada da sua inicial vocação de espectáculo popular, convém não esquecer.
E agora vem o problema mais grave. É que os criadores teatrais também contribuíram para o afastamento do público. Porque acreditaram nessa promoção do teatro para "elevados espíritos", ou porque recearam a campanha ideológica que combate as linhas do teatro popular em nome do "anti-maniqueísmo". Que é , evidentemente, outra mistificação, porque não há nada mais maniqueísta do que o teatro do bom -senso e o habitual formalismo repetitivo e gratuito não tem a menor poética nem encanto estético.
E muitos não perceberam que o teatro popular é precisamente o oposto do populismo rasca tão adorado-dir-se-ia paradoxalmente-, por essa gente de "alto nível".
E então, o que aconteceu?
Em nome de experimentalismos e de pós-modernismos brotam falsos vanguardismos. Substituem-se histórias por textos díspares e inconsequentes, surgiu o culto sórdido da incomunicabilidade em vez da relação afectiva com o espectador, ressurgiram o vedetismo caduco e o artista da torre de marfim.
E como o público não tem nada a ver com isso, pratica a deserção das salas.
Claro que perante este panorama apetece perguntar:
Quem tem medo do teatro ?
Que pergunta ridícula, não é? Ter medo do teatro, de uma peça, de uns actores que nos preenchem momentos de ócio?! Que absurdo!...
Mas...será que aqueles que têm medo de se verem retratados na praça pública gostam de teatro?
E os que pensam que o teatro só serve para fazer agitação política?
E os outros que lutam para que o teatro não tenha nada a ver com política? Como se isso fosse possível!!!
E os que têm horror ao humor e ao cómico que é impiedoso a descarnar situações, personagens e comportamentos?
E os que fogem da emoção e da lágrimas?
E os que se recusam a pensar e a olhar para o seu mundo?
E os que não se querem ver nas más companhias dos artistas?
E os que julgam que os artistas não passam de marginais e falhados sociais?
Gente infeliz, com certeza. Muita gente infeliz.
Tudo isto, e se calhar falta alguma coisa, são factores de crise. Mas o pessimismo é o sentimento mais reaccionário do mundo e eu continuo a acreditar no valor transformador das crises.
Porque o teatro é uma corrente de felicidade e de afectividade contra o egoísmo e o medo.
Luta por participar, comunicar, e por se entender entre si e os outros.
Sabe que pode desbloquear insegurança, que consegue abrir sentimentos e que transforma o acto poético em acto de vida.
Contra isso esbarram e são derrotados mil conceitos reaccionários: intrigas, invejas, discriminações sociais e económicas (sim, estou a pensar nos subsídios do Estado), a cobardia dos lacaios de "quem está a mandar", e a parolice dos admiradores incultos de vários modismos (estéticos, éticos, políticos).
Quem não tem medo do teatro é quem ama a vida, quem aceita as suas contradições, e quem sabe que o mundo está em eterna transformação.
Pessoalmente, continuo a ter um gosto e convicções profundas em relação aos méritos do humor, do riso e do absurdo por vezes violento e pouco cómico, na exposição e desmontagem dos mecanismos que nos cercam nesta, parece que dolce vita, que nos dizem que temos.
Regressando ao tema da minha comunicação, é evidente que a minha experiência de contactos com vários níveis de classes sociais me ensinou que a minha função seria útil e bastante agradável, se conseguisse assumir-me como um "elo de comunicação" e não como o Mestre senhorial e intocável.
Porque fazia a troca de experiências, absorvia o saber do "Outro", descobria contradições, fazia a síntese com os meus conhecimentos e algo de novo e melhor surgia; e , curiosamente, também da parte do "Outro"(por vezes menos preparado intelectualmente), se operava esse esforço de encontro, de contradição e síntese.
Ou seja, este método ajudava a desenvolver o acto de cidadania liberto de individualismo e projecto unipessoal, transformando-se num exercício colectivo, aberto, e por isso mesmo, fonte de novas acções de cidadania.
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